Cacildis! Mussum e o pastiche

Por esses dias me deparei com uma grande surpresa: o lançamento em CD do segundo álbum solo do Mussum!

Segundo álbum da carreira solo de Mussum

Isto mesmo, um dos ícones do programa Os trapalhões, conhecido por representar personagens pés-de-cana e por usar sem escrúpulos o sufixo “is” no final das palavras, tinha uma veia artística bem mais interessante do que a da comédia pastelão.

Que ele era músico não me era novidade. Sabia que ele era um dos fundadores do grupo Os originais do samba, mas até então nunca tinha me posto a ir atrás e ouvir o som do grupo – pelo menos com um grande interesse. Coisa, aliás, que ainda não fiz. Mas já arranjei cópias dos três álbuns solo do Mussum e me coloquei a escutá-los. Muito bacanas!

Mas não é exatamente sobre a qualidade musical do Mussum que eu quero falar aqui. O que tem que ser ressaltado são as discrepâncias existentes entre as suas duas atividades artísticas, entre sua faceta de cantor e a de humorista.

Como humorista, Mussum, assim como todo o restante do elenco d’Os trapalhões, servia de escada para a exaltação da figura do cara esperto, vivenciado sempre pelo Didi. A forma do programa era a de esquetes curtas ou médias em que predominava um conteúdo verdadeiramente simples, pouco trabalhado e com pouquíssimas mediações para se fazer entendido. O programa elaborava uma forma de humor que não era causado por piadas inteligentes, que exigiam do telespectador uma grande reflexão; pelo contrário, as piadas eram quase sempre baseadas em jogos ou fatos inusitados, que beiravam ao infantilismo.

Esse tipo de graça tem lugar na história, não é de forma alguma um fato isolado. Estava lá com Os três patetas, e está presente em quase todos os programas humorísticos da televisão. Ele é o pastiche, que segundo o nosso já conhecido Fredric Jameson, é a forma estética predominante do pós-modernismo.[1]

Pretendo falar sobre o pós-modernismo em outra postagem. Mas é importante saber que Jameson considera o pós-modernismo como um período histórico, mais do que simplesmente um fenômeno ideológico. Para Jameson, o pós-modernismo é produto de uma fase tardia de desenvolvimento do capitalismo, iniciada por volta da década de 1960, marcado por um avanço cada vez maior do capital financeiro e de uma tendência cada vez mais crescente de especialização da atividade humana, em todos os segmentos existentes.

A arte seria um destes segmentos e o pastiche a forma mais bem acabada de sua especialização. O pastiche se caracteriza, segundo ele, como um padrão estético que busca tornar a forma de uma obra artística seu próprio conteúdo. Em outras palavras, trata-se de tomar a arte pela arte, destacada de seu verdadeiro conteúdo, a saber, as determinações sociais de sua criação.

O pastiche, de maneira semelhante a paródia (padrão estético da modernidade por excelência), se baseia na reprodução de formas já existentes no campo da atividade artística. Mas enquanto que a parodia, em via de regra, tenta acrescentar um novo conteúdo às formas antigas, criando algo novo através de sua revitalização, o pastiche se resume a não acrescentar conteúdo novo, aliás, as discussões sobre forma e conteúdo deixam de fazer sentido em sua lógica, pois que a arte passa a ser uma técnica especializada, auto-suficiente, que tem na sua maneira de se mostrar o único conteúdo que lhe basta.

A graça simples, imediata, incitada pelas cenas do tipo pastelão (tortas na cara, esbofeteamentos gratuitos, uso de palavras esquisitas, e outras sutilezas infantis) é um bom exemplo de pastiche. Outro exemplo bem sacado de como se caracteriza essa expressão estética dominante no pensamento pós-moderno é a música do Zeca Baleiro Pastiche.[2] Essa música valoriza justamente a forma, pois o que se tem é toda uma construção poética pautada com a intenção de valorizar as rimas, nem que para isso se preencha os versos com orações sem ligação nenhuma entre elas, a não ser a métrica.

A faceta humorista do Mussum é também marcada pelo pastiche, sem dúvida alguma. E o que impressiona é que o seu lado de cantador nada tem disso. Ou se tem, é algo que fica completamente à parte.

Imagem de Mussum parodiando o cartaz da primeira campanha de Barack Obama à presidência dos EUA, por conta da escolha da cidade do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016

Carregado do mesmo bom-humor que marcou sua carreira n’Os trapalhões, Mussum cantava sambas que tratavam do cotidiano dos subúrbios do Rio feito um Bezerra da Silva. Mantendo a forma comum ao samba, sua produção desse período era muito mais carregada de conteúdo do que os “cacildis” que soltava ou pela sua incessante busca por mé. Se não buscava radicalidade, pelo menos tratava com ironia (convenhamos, uma forma de discurso extremamente inteligente) algumas relações do cotidiano, como na canção O torcedor, escrita por Dicró e gravada no seu último álbum (Mussum, 1986) onde cantava a agonia do torcedor de futebol dentro e fora de campo: dentro, com o juiz da partida, que só fazia roubar; fora, com o ladrão, que também teimava em só lhe roubar…

É uma pena que a figura que tenha ficado na mente da minha geração e da atual seja a do Mussum pasticheiro, e não a do sambista. Sinal de que andamos a olhar para o passado garimpando bizarrices (como o cartaz do “Yes we créu“) ou invés de procurar nele um momento do devir que vivemos agora, algo que poderia nos trazer uma melhor compreensão do presente. Terrível!

 

 


[1] JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio [traduçäo Maria Elisa Cevasco] – Säo Paulo : Ática ,1996.

[2] Quem quiser escutar a música do Zeca Baleiro é só acessar sua página e se dirigir à juke box no topo da página. O endereço é http://www2.uol.com.br/zecabaleiro/.

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